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Novo CPC deve mudar cultura de litigância excessiva

Tramita atualmente na Câmara dos Deputados o Projeto do Novo Código de Processo, o qual está em fase final de discussão.

Para além de uma discussão marcada pelo jargão jurídico tradicional, este texto pretende analisar como o novo CPC pode facilitar o fluxo de trocas comerciais e melhorar a vida das pessoas.

Isso tudo colocado, podemos iniciar essa discussão focando-nos na principal matriz que norteou a elaboração da nova legislação: a valorização dos precedentes judiciais.

Embora essa discussão não seja nova, e tenha sido aperfeiçoada pela chamada de “técnica de julgamento por amostragem” do artigo 543-C do CPC atual (onde, numa casca de noz, o Superior Tribunal de Justiça decide um caso concreto numa demanda repetitiva ficando um entendimento a ser adotado nos casos análogos), parece-nos que ela ficou incompleta. Afinal de contas, no Brasil continuamos a litigar excessivamente e a nossa formação jurídica, voltada para uma cultura da litigância, parece ainda ignorar que, com pequenas mudanças institucionais, podemos trazer melhorias sociais significativas.

Com efeito, o Poder Judiciário brasileiro continua assoberbado de processos dos quais não consegue dar conta. Além disso, diante do cenário de baixo crescimento econômico que vem sendo realizado nos últimos anos, aliado à perspectiva de crescimento igualmente baixo para os próximos, isso certamente refletirá na arrecadação tributária do Estado, por conseguinte, na quantidade de repasses orçamentários para os diversos tribunais do país.

Assim, a não ser por inovações técnicas que aumentem a eficiência da prestação jurisdicional sem implicar aumento de despesa (como ocorre no processo eletrônico, que certamente poupará espaço físico dos fóruns, diminuindo a quantidade de despesas correntes com o acervo imobiliário do Judiciário) ou por diminuição da “demanda indesejada de litigância”, dificilmente conseguiremos manter um Poder Judiciário confiável no sentido de conferir ao país a segurança jurídica necessária para que volte a ser um local atrativo para investimentos consistentes. Isto é, ou melhoremos a qualidade da oferta de decisões judiciais ou diminuamos a quantidade demandada. Para termos uma ideia da dimensão do problema, no ano de 2011, cada ministro do STJ recebeu, em média, um processo a cada dez minutos, enquanto julgou um a cada dezessete (nisto compreendido o tempo necessário para a análise, para a compreensão de controvérsias e de pretensões das partes, para a redação de decisão/voto e, eventualmente, para a submissão do caso aos órgãos colegiados, e isto sem falar em eventuais recursos — agravos regimentais, embargos de declaração e de divergência eventualmente manejados pelas partes no âmbito interna corporis da própria Corte Superior). Fica bem claro que, no atual arcabouço institucional, a oferta do serviço jurisdicional não consegue atender a contento a sua demanda.

Diante desse panorama, é imperioso que o Poder Judiciário não só consiga nortear as decisões dos juízes inferiores e a vida social, mas também, que recupere o seu crédito perante a sociedade como um todo otimizando o seu desempenho. Todavia, não podemos esquecer que a melhoria do desempenho do Poder Judiciário não é a salvação da lavoura, mas sim, uma das várias reformas institucionais necessárias no Brasil para melhorias marginais no ambiente de mercado.

Pois bem, a valorização dos precedentes constitui-se em síntese, num forma de pensamento que procure justamente evitar que o Poder Judiciário seja atravancado por uma série de demandas inúteis, como ocorre atualmente no cotidiano processual.

Mas, aqui, precisamos esclarecer o que se entende pela utilidade do precedente.

Um precedente é necessário quanto estamos diante de um ambiente de incerteza jurídica sobre qual deve ser a regra aplicável para uma situação de fato e as pessoas não conseguem se entender, seja porque temos mais de uma norma jurídica que possa ser aplicável (ao que se denomina de antinomia jurídica), seja porque temos uma omissão sobre o caso em questão (ao denominamos de lacuna).

Além disso, essas decisões não podem levar muito tempo para serem proferidas. É muito comum atualmente que vários processos que discutam a mesma questão jurídica de fundo levem aproximadamente uma década (ou mais que isso) para que o Poder Judiciário adote uma posição a respeito. Essa demora, na prática, inviabiliza a própria compreensão de que um precedente deve ser, assim como as leis formais, algo a ser incorporado no cotidiano da vida das pessoas. Afinal de contas, você, tendo que cuidar de sua vida e de seus afazeres, esperaria dez anos para saber que decisão tomar num ambiente de incerteza jurídica?

E, nesse cenário, o projeto do CPC inova bastante ao instituir o chamado incidente de resolução de demandas repetitivas, onde um tribunal, tão logo seja verificada a presença de uma “litigância em massa” para uma determinada questão jurídica, pode desde logo (e sem que haja decisão prévia em primeira instância) estabelecer o entendimento aplicável ao caso, vinculando os demais juízes das instâncias inferiores para os casos futuros. Essa possibilidade de o tribunal “chamar para si” esse julgamento — seja diretamente, seja por provação de alguma parte, do Ministério Público etc., — certamente reduzirá bastante o tempo mediante o qual serão estabelecidos os precedentes. E isso não está no CPC atual.

Assim, os precedentes judiciais devem ser estáveis e devem ser emitidos sem demora para que possam ser compreendidos de maneira clara e precisa dentre os vários atores sociais. Isso, por sua vez, permite uma maior eliminação das dúvidas sobre quem deve ser o titular de um direito numa situação de conflito tende a diminuir o problema de subinvestimento, pois as pessoas poderão trabalhar com uma maior margem de segurança no seu processo de tomada de decisões, uma vez que já saberão como os juízes decidirão sobre um dado ponto. Isso é, uma alocação mais clara de direitos por meio precedentes é algo socialmente mais eficiente que o cenário de indefinição jurisprudencial (seja pela ausência de precedentes, seja pela presença de precedentes antinômicos), pois cria um ambiente mais propício para trocas e para uma cultura de mercado, que historicamente (e apesar de todas as suas falhas) revelou-se como o arranjo mais notável de desenvolvimento do bem-estar humano e da qualidade de vida das pessoas.

Enfim, o ordenamento jurídico, para que possa servir como instrumento de desenvolvimento e para a melhoria das pessoas, deve assegurar que o cidadão comum não tenha sua liberdade e seus bens confiscados arbitrariamente. Isso é condição essencial de existência de qualquer sociedade que pretenda se inserir num círculo virtuoso de desenvolvimento. E isso não é assegurado apenas pela lei em sentido formal, mas também pelos precedentes judiciais que eliminam dúvidas que possam ocorrer sobre a aplicação das próprias leis e proteger o cidadão contra investidas oportunistas de grupos extratores de renda. É a segurança ofertada pelas instituições e a confiança por elas inspirada que, ao fim a ao cabo, criam um ambiente mais favorável para a efetivação de contratos e proteção de direitos de propriedade e são o fator determinante para se entender a discrepância entre os níveis de desenvolvimento da África subsaariana e os países do Atlântico Norte.

Para se ter uma ideia do risco que a indefinição pode acarretar, vejamos a seguinte situação: um determinado produtor de soja vendeu, em 2003, a sua produção para a safra de 2004 a um determinado intermediário, fixando o preço para o mercado futuro no valor de US$ 100 a saca. Em 2004, percebeu-se que, na bolsa de Chicago, onde tal commodity é negociada, o seu valor chegou a US$ 120,00 a saca. O produtor agora requer judicialmente o desfazimento do negócio sob o fundamento de que essa valorização seria algo “extraordinária” e “imprevisível”. Enfrentando a questão, alguns tribunais brasileiros entenderam para procedência dos pedidos de resolução contratual. Como consequência de tais precedentes, o mercado de compra antecipada de soja ficou comprometido durante algum tempo, pois vários dos potenciais adquirentes ficaram hesitantes em realizar tais pactos em virtude do risco adicional criado pelo cenário de insegurança jurídica de tais precedentes. Felizmente, o STJ, após alguns precedentes em sentido contrário, entendeu que a variação do preço da saca da soja ocorrida posteriormente à celebração do contrato não se consubstancia acontecimento extraordinário e imprevisível, inapto, portanto, à revisão da obrigação com fundamento em alteração das bases contratuais.

Assim, um processo judicial será útil quando servir para contribuir para a formação de um precedente judicial que elimine (ou pelo menos, diminua) o ambiente de incerteza normativa acima descrito. Por outro lado, ele será socialmente inútil quando não servir para a formação de um precedente, uma vez que, nesse caso, consistirá apenas num custo perdido para a sociedade sem qualquer contrapartida, especialmente tendo em vista que, nesse último caso, as partes certamente tinham informações simétricas em relação ao padrão de decisão do Poder Judiciário e poderiam, assim, celebrar um acordo para prevenção de litígios.

E é justamente dentro desse contexto que esperamos que o novo CPC traga as suas inovações socialmente mais benéficas e que o Brasil, com o tempo, mude a sua matriz cultural de uma litigância excessiva para um padrão de litigância mais “selecionada”, onde a formação do operador se volte muito mais para identificação de possibilidades de composição do que para a apresentação de uma petição perante o Poder Judiciário como solução prioritária para uma situação de conflito.

Alexandre Freire é doutorando em Direito Processual Civil pela PUC-SP, mestre em Direito Constitucional pela UFPR, pesquisador do Núcleo de Processo Civil da PUC-SP, professor da pós-graduação em Direito Processual Civil da PUC-RJ, professor da Pós-graduação em Direito Processual Civil da USP (FDRP), professor da Escola Paulista de Direito-EPD, professor convidado da Associação dos Advogados do Estado de São Paulo-AASP, professor da Escola Superior de Advocacia da OAB-SP, membro do IBDP.

Bruno Dantas é conselheiro e presidente da Comissão Permanente de Articulação Federativa e Parlamentar do Conselho Nacional de Justiça. Consultor do Senado Federal, doutorando em Direito Processual pela PUC-SP, mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP, professor do IDP-DF e membro das comissões de juristas encarregadas de elaborar o anteprojeto do Código de Direito Processual Civil e do Código de Direito Empresarial. Secretário-geral e fundador da Academia Brasileira de Direito Processual Constitucional.

Leonardo Albuquerque Marques é advogado da União, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) – 2010; doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; membro associado da Associação Brasileira de Direito e Economia; e Diretor de Comunicação da Associação Nacional dos Advogados da União.


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