Lógica de guerra no combate às drogas gera alienação, diz Pedro Abramovay
Políticas públicas focadas na repressão e militarização, nas quais cada vez mais pessoas são presas e uma quantidade maior de drogas é apreendida, integram a ideologia de “guerra” aplicada no combate às drogas. O problema, segundo Pedro Abramovay, ex-secretário de Justiça e professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas) no Rio de Janeiro, é que não existe nenhum índice confiável para averiguar o resultado dessas ações. “A lógica de ‘guerra’ gera alienação”, diz o pesquisador.
O professor sugere que avaliação deveria levar em conta outros dados estatísticos, como promoção da saúde e diminuição da violência. “Os indicadores de qualquer lugar do mundo são prisão e apreensão de drogas. Mas o que adianta saber isso?”, questiona Abramovay. Para ele, o Estado precisa fazer uma análise aprofundada, com base em indicadores confiáveis, antes de agir.
O debate “Drogas: uma guerra sem fim? Objetivos, fracassos e alternativas à militarização” foi promovido pelo Programa de Educação Tutorial do curso de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pela revista Samuel na sexta-feira (16/3). Além de Abramovay, participaram do debate o professor do curso, Reginaldo Nasser, e o diretor de redação do Última Instância e da revista Samuel, Haroldo Ceravolo Sereza.
O diretor apresentou a revista Samuel, que neste mês traz oito reportagens de diferentes veículos sobre o combate às drogas no mundo. As experiências de outros países, repressão policial, os efeitos na sociedade estão entre os assuntos abordados. “Nosso objetivo é desinterditar o debate e ultrapassar as barreiras ideológicas que impedem a discussão sobre a guerra as droga”, afirmou Haroldo.
Além do dossiê, o 2° número da revista traz ainda reportagens de política, cultura, meio ambiente e ciência. Entre elas, uma reportagem histórica na seção “Vale a Pena ler de Novo”, na qual, em 1979, o jornalista Raimundo Pereira, do jornal Movimento, foi ao ABC paulista conhecer os companheiros de Lula nas greves que desafiavam a ditadura.
Durante o debate, o diretor destacou a questão na violência no México e o sucesso de Portugal no tema. No final dos anos 1990, quando o consumo de heroína era elevado, o país decidiu tomar uma medida radical e polêmica: descriminalizou o consumo de toda e qualquer droga. O foco da ação do Poder Público deixou de ser a repressão policial ao consumo de entorpecentes, para privilegiar o tratamento de saúde e a assistência social aos usuários.
Pedro Abramovay afirma que a ideologia de repressão está ferindo direitos. “A Constituição Federal é suspensa [em nome do combate às drogas], trazendo danos concretos aos direitos e garantias fundamentais. A maneira como o Brasil está lidando com o tema é muito grave”, alerta o professor. “Quando o tema é drogas existe a flexibilização de direitos com base no argumento de que estamos em guerra”.
Em 2006, o Brasil alterou a Lei de Drogas (Lei 11.343) e proibiu a conversão da pena de prisão para alternativa no crime de tráfico. Abramovay conta que o resultado foi um aumento considerável na população carcerária relacionada ao tipo penal. “Antes da lei eram 60 mil presos por relação com drogas, e hoje são 117 mil”, diz. Segundo ele, nenhum outro crime teve um trouxe um aumento tão grande da população carcerária.
De acordo com a legislação brasileira, nos casos de crimes com pena menor que 3 anos, quando o réu é primário e o crime não é violento, a regra é o acusado responder pelo crime em liberdade ou com pena alternativa.
Abramovay citou o caso de um juiz do Rio de Janeiro negou liberdade a um homem preso com uma quantidade de droga que, em tese, poderia ser considerada para consumo próprio. O juiz, no entanto, argumentou que, como morador de uma favela, o acusado não poderia ter dinheiro para adquirir aquela quantidade a menos que fosse traficante. Portanto, conclui Abramovay, ele ficou preso “por ser pobre”. “A diferença entre traficante e usuário é tênue”, diz Abramovay, e pode ser também discriminatória.
O STF (Supremo Tribunal Federal), em setembro de 2010, declarou a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei de Drogas, que proibiam a conversão da prisão em pena alternativa. De acordo com Abramovay, antes da lei a “massa” de presos com drogas tinha a possibilidade de pena alternativa. “E apesar do Supremo ter declarado isso inconstitucional, os juízes de 1ª instância não respeitam”, lamenta.
O professor compara as prisões por tráfico com casos de homicídio, nos quais ainda é possível aguardar o julgamento em liberdade. “Em 92% dos casos relacionados às drogas, os acusados respondem presos”, destaca. Ainda sobre as violações das garantias fundamentais, ele diz que 17,5% das prisões acontecem na casa dos acusados, sem mandado.
Panorama internacional
De acordo com Abramovay, o presidente norte-americano Barack Obama tem uma visão mais “liberal” quando trata da questão das drogas internamente. “Ele parou de perseguir os que defendiam o uso medicinal da maconha e diminuiu a pena para o usuário de crack”. “Mas a política externa de combate às drogas continua bastante severa”, afirma.
O professor destaca que existe uma diferença entre o debate sobre drogas no Brasil e nos EUA. “Lá o debate é mais politizado”, diz. A política antidrogas é claramente identificada pelo movimento social como ações que prejudicam, sobretudo, pobres e negros.
Ele explica que o país produz maconha lícita para uso medicinal. E a maior parte da população se mostra favorável a legalização. “Dois estado vão fazer plebiscito sobre a legalização, Colorado e Washington”. Ele acredita que se um estado americano legalizar o mundo vai rediscutir o assunto.
O histórico do México foi classificado como “desastroso” pelo professor. O país optou pela militarização e hoje são quase 50 mil mortos nos últimos quatro anos, relacionadas com a violência.
Na América Central o resultado não é muito diferente, onde os filhos de imigrantes compõem as gangues organizadas conhecidas como “maras” (gangues juvenis), que voltam ao país de origem, Honduras e Guatemala, após de serem deportados dos Estados Unidos, depois de cumprirem penas. “Os EUA acabam exportando violência para México e América Central”, pondera.
A Bolívia assinou com mais 184 países a Convenção Única sobre Entorpecentes da ONU (Organização das Nações Unidas), porém decidiu retirar-se argumentando que o documento veta a mastigação da folha de coca, já que classifica a planta como entorpecente e a submete ao controle internacional.
Segundo Abramovay a Bolívia voltou a solicitar sua adesão à Convenção, mas com uma reserva sobre a proibição do uso da folha de coca no país para fins tradicionais. “Na Bolívia, o respeito à tradição da mastigação da folha de coca está presente na Constituição do país”, destaca.
Segundo pesquisador, o momento mais favorável para a discussão do tema drogas, mas o debate ainda é difícil. Ele destacou a importância do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao se posicionar sobre o assunto, mas afirma que cada vez mais é possível ver violação de direitos.
Mudanças na sociedade
Organizador do encontro, o professor Reginaldo Nasser defendeu que o assunto precisa ser observado em um contexto amplo e questiona os parâmetros estabelecidos na guerra contra as drogas.
Ele citou uma investigação que ocorreu no México, em 2006, na qual foi descoberto um esquema de lavagem de dinheiro do tráfico pelo banco Wachovia Corp. A punição para o banco veio na forma de uma sanção por não ter suficientemente rigoroso na busca de informações sobre a origem do dinheiro – e não por participação no tráfico em si. “E quando perceberam que o negócio podia atingir outros bancos grandes e conhecidos, pararam as investigações”, disse.
No Brasil, por exemplo, seria preciso analisar dados de órgãos como o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), responsável por monitorar as transações atípicas no mercado, para entender o entorno do tráfico.
Nasser, porém, acredita que o debate sobre a “guerra às drogas” está equivocado, porque não considera o que acontece na sociedade. Como comparação, citou o texto de Marx, “A questão judaica”, em que o pensador alemão “debate tudo”, mas deixa de lado a forma como seus contemporâneos costumavam tratar o tema. O que tinha mudado não era o judaísmo, mas o ambiente social.
Fonte:Fenapef