Lenda, seu Barbosa jura que tem 105 anos e conheceu Lampião
Fonte: Campo Grande NewsTodo canto desse mundão tem uma lenda. Quantas vezes você já não ouviu falar em um personagem mítico de algum lugar? São pessoas que nunca existiram, ou até existiram, mas tiveram suas biografias modificadas para se enquadrarem ao conceito de “lenda”. É muito comum essa atração pelo heroísmo, pelo sobre-humano, pelo que vai além de nossa capacidade. Sei lá, eu sinto isso.
Eis que estava no WhatsApp e recebo a seguinte mensagem de um conhecido: “Lucas, lá no Rouxinóis tem uma lenda urbana de um senhor que teria mais de cem anos e teria sido cangaceiro kkkkk. Ele anda lá pelo bairro, mas nunca ninguém confirmou isso”.
Pronto, foi o suficiente, tinha que encontrá-lo. O Bairro Conjunto Residencial Recanto dos Rouxinóis fica na região sudeste de Campo Grande, digamos que um pouco afastado, apesar de que nada nessa cidade é afastado.
GPS me joga no meio do bairro. Ando um pouco pelas ruas até identificar um lugar onde pudesse ter uma informação segura. Pergunto ao dono de um mercadinho de esquina se ele conhece um senhor que teria mais de 100 anos e que teria sido cangaceiro.
- Ah o seu Pedro, que tem 108 anos? Sim, conheço sim. – e me explicou como chegar à casa dele.
Ficava a poucas quadras de onde pedi informações, cheguei rapidamente. Só deu tempo de pensar que ele era conhecido mesmo e torcer para estar em casa, para não me xingar e mandar embora, afinal teria sido um cangaceiro, um homem perigoso.
A casa, segundo a informação que tinha recebido, era de esquina. Na frente da quadra um gramado extenso com alguns bancos onde estava sentada dona Elza. Ao telefone, ela me disse que o homem que estava procurando morava na esquina, mas corrigiu dizendo o nome correto: João, não Pedro.
Daqui a pouco voltamos a falar da dona Elza.
João Barbosa ou só Barbosa para os íntimos, esse é o nome do “senhor que teria mais de cem anos e teria sido cangaceiro”. Ele titubeia. Vem até mim desconfiado, não sai do portão.
Me identifico, digo que fiquei sabendo da história dele e que queria contá-la. Mesmo cortês diz que está sem tempo, que fica sozinho com a esposa em casa e que, por questão de saúde, precisa cuidar dela.
Insisto, então, em pontos específicos da história. “É verdade que o senhor tem mais de 100 anos? É verdade que conheceu Lampião?”. Aí os olhos brilharam. A mão foi imediatamente a maçaneta, abrindo o portão quase que involuntariamente.
“Tenho 105 anos e já andei por esse mundo sim”, disse parecendo orgulhoso de encontrar alguém que já conhecia seus feitos. (Mantivemos uma distância de mais de 1m na conversa, medida adotada por conta da pandemia).
Pedi, gentilmente, por algum documento que provasse sua idade. Na identidade de seu João Barbosa mostra que ele nasceu em 24 de junho de 1927 na cidade de Rochedo, a 60 quilômetros de Campo Grande, teria, portando, 92 anos. “Mas esse documento aí não diz nada não. Quando fui registrado já era moço, já tinha mais de 10 anos de idade”.
Mesmo se não tivesse os 105 anos, seu João impressiona pela força com que se movimenta e clareza na fala. Com sotaque neutro, tem convicção, e parece até meio ofendido com as dúvidas.
Parto para história com Lampião, apelido de Virgulino Ferreira da Silva, cangaceiro mais famoso do sertão nordestino e inimigo número um do Estado nas décadas iniciais do século passado.
“Conheci Lampião eu ainda era menino. Fui a cavalo com Antonio Xeripa, um homem famoso por essas bandas por ser valente. Ficamos lá um ano e meio com o bando do Lampião. Mas a gente não era cangaceiro que nem eles, a gente só acompanhava. Lampião cuidou de mim, na verdade”.
Nesse ponto seu João parece misturar um pouco a história. Ele diz não só que conheceu Getúlio Vargas, presidente na maior parte período em que Lampião atuou, como testemunhou um aperto de mão entre os dois no Nordeste.
Fato é que não há registro historiográfico desse aperto de mão ou de qualquer encontro entre os dois. Aliás, muito pelo contrário, a morte de Lampião em 1938 foi uma ordem direta de Getúlio, já cansado da imagem que um homem como o cangaceiro passava para fora país.
Seu Barbosa diz que, em seguida, depois de abandonar o bando de Lampião, na década de 30, foi parar no Pantanal. “Trabalhei muito tempo como boiadeiro em fazendas do Pantanal”.
Em sequência surge outro capítulo interessantíssimo da vida de João Barbosa. Ele voltou para Campo Grande depois de longo período no Pantanal e entrou para a Polícia Civil na década de 70. “Naquela época não tinha concurso. Eles viram que eu era esperto e vivido, então me aceitaram”.
Barbosa é muito conhecido entre os policiais civis de Mato Grosso do Sul. “Ele é um ícone pra gente, é um almanaque, se manteve firme nas situações em que passou na polícia e depois também. Até hoje temos muito respeito por ele”, diz o Giancarlo Corrêa Miranda, presidente do Sindicato dos Policiais Civis de Mato Grosso do Sul.
Seu Barbosa conta que atuou na investigação da morte de Lúdio Filho, o Ludinho, o único herdeiro do fazendeiro e político Lúdio Martins Coelho, um dos homens mais ricos do então Mato Grosso, em 1976. O caso tomou proporções nacionais pelo mistério que rondava a motivação do crime.
“Trabalhei com o Fleury pra descobrir quem tinha mandado matar o Ludinho”, lembra Barbosa, se referindo a Sérgio Fernando Paranhos Fleury, delegado famoso trazido do Estado de São Paulo só para a investigação.
Barbosa diz que sente muita saudade dessa época, mas entende que é um tempo que não volta mais. “As coisas hoje são muito diferentes meu filho, eu mesmo conhecia cada prédio de Campo Grande, não tinha um, um só, que eu não tinha entrado”, diz colocando o dedo em riste.
Me despeço de seu Barbosa e volto paro carro perto de onde estava dona Elza. Falo de Elza Cruz de Souza, aposentada de 73 anos. Ela conversava com uma vizinha. Interrompo o diálogo das duas pra perguntar se sabem alguma coisa do personagem que tinha acabado de entrevistar.
“Não acredito nas histórias dele não. É mentiroso”, diz a vizinha.
Dona Elza logo defende. “Não é não, ele tem mais de 100 anos sim. Meu sogro nasceu em 1921 e morreu com 100 anos de idade. Ele sempre falou que quando conheceu seu Barbosa, ele já era moço. Os dois viviam pra lá e pra cá junto dos Xiripa”, recorda evocando mais uma vez os Xiripa.
A verdade é que precisamos saber o que tem nessa água do Rouxinóis. Todo mundo lá chega aos 100 anos. “Eu quero chegar aos 100 também”, ri dona Elza.
Seja na memória ou na imaginação, viajamos mais de 100 anos em cerca de 20 minutos de conversa com seu João Barbosa. Esteja falando a verdade ou não, isso não interessa pra ninguém a não ser para ele mesmo, para o que lhe faz bem. Como diria Manoel de Barros: “Tudo que não invento é falso”.
Afinal, será que a verdade, essa coisa chata, teria força para criar as lendas que tanto amamos?