Há chances de a Lei Anticorrupção “pegar”?
Vigente desde janeiro último, fruto de um projeto de lei apresentado pelo Poder Executivo em 2010, a Lei 12.846, sancionada em 2013, valendo-se da máxima de que “sem corruptor não há corrupção”, prevê a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.
Destaque-se que, apesar de ser conhecida como “Lei Anticorrupção”, ela impõe penalidades à prática de atos lesivos contra a administração pública, os quais nem sempre envolvem corrupção. Notamos, por exemplo, que a lei punirá o ato de “impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público”, ou seja, ato sem qualquer garantia de oferecimento de vantagem a um agente público.
Primeiramente, de se mencionar que, apesar de se tratar de uma lei que prevê a punição administrativa dos infratores, uma rápida leitura da norma mostra que ela possui “cara, cheiro e forma” de lei penal, não obstante estabelecer a responsabilização objetiva dos agentes. Esse sentimento constitui-se num alerta importante, já que normas penais estabelecem garantias constitucionais singulares, as quais observamos não estarem presentes na Lei 12.846/13. Não só por esse aspecto, mas também por meio de uma análise mais detida da lei, nota-se que ela ainda será alvo de muita polêmica. Abordaremos aqui dois aspectos em especial.
O primeiro ponto de controvérsia de que ousamos tratar é o que a lei define como “Acordo de Leniência”. Trata-se de mecanismo que possibilita redução das penalidades a serem aplicadas à pessoa jurídica que colaborar para a investigação dos atos lesivos praticados. Apesar de se tratar de assunto controverso, verifica-se que os defensores desse mecanismo (também empregado, por exemplo, no âmbito do Cade) argumentam que a celebração de acordos de leniência abrevia o procedimento administrativo e constitui, de fato, incentivo à denúncia do ilícito cometido.
Observa-se, contudo, que a celebração de um acordo nos moldes previstos na Lei 12.846/13 manterá a persecução criminal dos envolvidos. Ora, uma vez que o acordo de leniência deverá ser firmado pela empresa, na pessoa de seus dirigentes ou administradores, esse mecanismo incentivador da denúncia dificilmente será buscado, já que as pessoas físicas envolvidas no ilícito ainda poderão ser responsabilizadas, em especial, criminalmente. A menos que os envolvidos não estejam mais atuando na empresa, esperar que um acordo de leniência seja firmado nesses termos é, de fato, uma ficção.
Um segundo e último ponto que destacamos reside no fato de que o processo administrativo para a apuração da responsabilidade da pessoa jurídica pela prática do ato lesivo contra a administração pública deverá ser instaurado e julgado pela autoridade máxima de cada órgão ou entidade dos três Poderes. Não é necessária muita reflexão para se observar que para um mesmo ato poderemos ter mais de um Poder envolvido e, por que não, mais de um ente da federação lesado. A quem caberá a instauração e o julgamento do processo administrativo nesses casos? A todos que se julgarem prejudicados? Nesse particular, as pessoas jurídicas correm o risco de terem que responder a diversos processos administrativos acerca de um mesmo fato, o que poderá, inclusive, determinar a condenação e a absolvição pela prática de um mesmo ato, a depender do órgão ou entidade que conduzir o procedimento sancionador.
Nesse aspecto, em especial, destacamos que o art. 24 da lei define que a multa e o perdimento de bens, direitos ou valores aplicados aos infratores serão destinados aos órgãos ou entidades públicas lesadas, ou seja, a norma tem um “certo poder arrecadatório”. Vivemos diuturnamente experiência semelhante no âmbito do Direito do Trânsito: os municípios não se ressentem em utilizar as sanções administrativas pecuniárias como mecanismo para auferirem receitas. Espera-se que a regulamentação pelo Executivo Federal venha a sanar, em especial, essa dúvida, definindo objetivamente o ente público que poderá demandar contra o suposto infrator. Temos condições de antecipar, todavia, que a regulamentação promovida pelo Paraná por meio do Decreto 10.271/14 não tratou em especial desse tema.
Enfim, por envolver um tema muito sensível, a Lei Anticorrupção brasileira vem sendo, e ainda será, por algum tempo, objeto de amplas discussões. É provável que levaremos alguns anos até que a aplicação da norma se estabilize. Até porque uma rápida pesquisa possibilita-nos verificar que o problema da corrupção de agentes públicos é tema controverso em boa parte dos países. Lembramos que até bem pouco tempo alguns países da Europa, entre eles a Alemanha, permitiam inclusive a dedução fiscal de suborno pago para a efetivação de seus negócios ao redor do mundo. Não nos esqueçamos de que a base para as leis atuais é a legislação norte-americana que disciplina o combate à corrupção internacional desde 1977. A norma dos Estados Unidos, conhecida como FCPA (ForeignCorruptPracticeAct), somente produziu efeitos perceptíveis ao fim dos anos de 1980, ou seja, levou mais de uma década para se consolidar.
Em verdade, verifica-se que com o FCPA as empresas norte-americanas assumiram posição de desvantagem competitiva em relação às dos demais países, já que poderiam ser punidas dentro dos EUA por atos de corrupção praticados no exterior. Nos últimos anos, acordos celebrados em fóruns como a ONU e a OCDE (devidamente coordenados pelos Estados Unidos) obrigaram outros países a adotar políticas internas de combate à corrupção. Com a nova lei, o Brasil, assim como o Reino Unido, que instituiu legislação semelhante em 2010 (UK BriberyAct), passou a integrar o rol de países que buscará punir de forma mais rigorosos a atos de corrupção praticados perante seus agentes públicos.
Apesar de certo ceticismo local quanto à sua efetividade, a lei está posta e vigente. Os desafios são enormes, já que a burocracia institucional estatal, não há a menor dúvida, contribui para a imposição de dificuldades para a venda de facilidades. Ao prever punição severa aos corruptores, espera-se, no mínimo, que a Lei 12.846/13 possa provocar uma transformação cultural no ambiente corporativo nacional.
Emerson Albino, advogado e economista, é especialista em Direito Tributário.