BOLETIM DE OCORRÊNCIA DE PRESERVAÇÃO DE DIREITO
O que é isso? Para que Serve? Qual a sua base legal? Todos estes questionamentos se resumem a uma simples resposta: nada! Absolutamente nada, não existe embasamento legal que sustente tal registro, pois, não se trata de uma “notitia criminis”, vez que, é fato atípico, e constitui-se e um documento despido de força probatória, ou que possa entregar real garantia, apta a preservar direitos.
Agora vejamos o que seria preservar direitos. Primeiramente o que seria Direito, para Immanuel Kant, “Direito é o conjunto de condições, segundo as quais, o arbítrio de cada um pode coexistir com o arbítrio dos outros de acordo com uma lei geral de liberdade”, para Niklas Luhmann, o direito é "A estrutura de um sistema social respeitante à generalização congruente de expectativas normativas de comportamento." A preservação de direitos é instrumento de defesa, disponibilizado ao cidadão, por meio da Constituição Federal em seu artigo 5º, xxxv, denominado Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição, qual preceitua que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Posto isto, é evidente que a função jurisdicional cabe apenas e exclusivamente ao Poder Judiciário, não havendo jurisdição fora deste poder, sob pena de violação do princípio do juiz natural, extraído do inciso xxxvII, da Constituição Federal, qual informa que não haverá juízo ou tribunal de exceção.
Ainda seguindo a trilha dos direitos fundamentais, cabe, por último, mencionar que o Poder Executivo não esta elencado no inciso, xxxv do artigo 5º, da Constituição Federal, por tanto, sua atuação no contencioso jurisdicional acarretará em patente violação ao princípio da separação dos poderes.
Ao Poder Executivo, na figura da Polícia Civil, compete, conforme o artigo 144, parágrafo 4º da Constituição Federal, as funções de Polícia Judiciária, e a apuração de infrações penais, exceto as militares. Sendo assim, o constituinte reservou à instituição Polícia Civil a atuação na esfera penal, no que diz respeito a apuração de crimes e contravenções penais, em fase pré-processual, servindo apenas de suporte probatório, apto a consubstanciar a promoção da denúncia.
No que tange a matéria criminal, cabe lembrar que o direito penal, só deverá entrar em cena quando os demais ramos do direito se mostrarem insuficientes, sendo ele, a última solução, a ultima ratio. Bem por isso, é que não se pode banalizar a função do Direito Penal, trazendo ao seu campo, temas de menor importância, quais, não interessam a esta matéria, que tem por função, proteger os bens jurídicos mais relevantes. Em razão desse rigor, o Direito Penal tem caráter subsidiário, pois, é meio que pode cercear a liberdade do indivíduo, por isso, o princípio da intervenção mínima é instrumento balizador na criminalização de condutas consideradas nocivas a sociedade, e também meio limitador do poder do Estado.
Para melhor ilustrar, estas assertivas doutrinárias, o Professor e Delegado de Polícia Geraldo do Amaral Toledo Neto, em seu artigo intitulado, O Delegado de Polícia e seu Juízo de Valoração Jurídica, citando Nelson Hungria, aduz, “Na ocorrência, por exemplo, de um caso fortuito, sem que haja atitude voluntária e consciente da pessoa, pode ser dispensada abertura de Inquérito Policial por falta de conduta penalmente relevante. Para que haja crime é mister a existência do somatório de um fato típico, antijurídico e culpável. Para que um fato seja considerando típico de um criminoso é necessário, primeiramente, que haja uma conduta do agente. A conduta ou ação é o comportamento humano, avaliado pelo direito. O maior dos autores criminalistas, Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1980), assim rezou: "Na análise de uma conduta de interesse penal, é necessário que a ação seja voluntária e consciente, não se considerando ação o ato meramente reflexo ou inconsciente." Na falta da conduta de interesse penal, falta a necessária etapa da persecuatio criminis denominada Fato Típico. Sem o Fato Típico, não há de se falar em crime. Sem crime, falta JUSTA CAUSA para qualquer Inquérito ou TCO. Qualquer atitude pública do Delegado de Polícia contra aqueles que não cometeram crime pode configurar constrangimento ilegal, sendo seus atos passíveis de trancamento via Habeas Corpus.”
Feitas as apresentações, é inteligível presumir que a Policia Civil não é órgão competente para preservar direitos, e sim o Poder Judiciário, órgão investido de competência constitucional para tanto. Porém, nos deparamos diariamente, com situações em que, Delegados de Polícia despacham boletins de ocorrência com a denominação de preservação de direito, atribuindo fictícia legitimidade a uma declaração unilateral, despida de caráter criminal e sem importância para a esfera penal, isso tudo, apenas para satisfazer o interesse de uma das partes, que recorre a Polícia Civil, acreditando que esta instituição, braço armado do Estado, possa garantir a defesa de seus direitos.
Em brilhante lição, novamente o Professor e Delegado de Polícia, Geraldo do Amaral Toledo Neto, em seu artigo intitulado, O Delegado de Polícia e seu Juízo de Valoração Jurídica, magistralmente assevera, “Se os Delegados de Polícia fossem apenas uma máquina de despachar: ENCAMINHA-SE AO M.P., como sugere alguns promotores de Justiça, emperraria mais a máquina judicial, que tanto sofre hoje com o número reduzido de Juízes. Encaminhar ao fórum BOPMs de Atrito Verbal, Desavença Comercial, com o devido respeito, seria uma aberração jurídica e ofensa ao contribuinte e ao interesse público.”
Noutra quadra, também é razoável lembrar que alguns advogados, de modo não sapiente, recorrem a Polícia Civil para fazerem uso desta peça administrativa precária, o que demonstra falta de conhecimento técnico jurídico para defesa de suas causas, ou talvez, temerário interesse nelas.
Como foi demonstrado anteriormente, o boletim de ocorrência de preservação de direito, viola dispositivos constitucionais, e de acordo com o juramento da classe, tal prática, se torna inidônea frente ao compromisso solenemente prestado pelo profissional a Ordem dos Advogados do Brasil, e que esta normatizado no artigo 20, do Regulamento Geral da Advocacia e da OAB, in verbis: “Prometo exercer a advocacia com dignidade e independência, observar a ética, os deveres e prerrogativas profissionais e defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da Justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”.
Por fim, cabe concluir que o boletim de ocorrência de preservação de direitos deveria ser extinto, pois, viola direitos e garantias constitucionais, e ainda acarreta prejuízos a atividade da Polícia Civil, uma vez que, agrega função atípica as suas atribuições legais.
REFERÊNCIA:
TOLEDO NETO, Geraldo do Amaral. O delegado de polícia e seu juízo de valoração jurídica. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 82,23 set. 2003. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/4298>. Acesso em: 11 fev. 2016.
AUTOR: FELIPE JURIATI, Investigador de Polícia lotado na DEPAC/CAMPO GRANDE, Bacharel em Direito pela Faculdade UNIDERP.