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A violência doméstica

 Tiago Presser

Ao longo da análise do tema exposto no título deste capítulo, estabelecer-se-ão distinções úteis entre diferentes modalidades deste tipo de violência. Por ora, basta esclarecer o conceito mais abrangente, mencionando-se as categorias de violência doméstica e familiar.

Violência de gênero é o conceito mais amplo, envolvendo vítimas como mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos. Sabe-se que no exercício da função patriarcal, os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio.

Contudo, ainda que não haja nenhuma tentativa de trilhar caminhos diversos do prescrito pelas normas sociais, a execução do projeto de dominação-exploração da categoria social homensexige que sua capacidade de mando seja auxiliada pela violência. Com efeito, a ideologia de gênero é insuficiente para garantir a obediência das vítimas potenciais aos ditames do patriarca, tendo este necessidade de fazer uso da violência (SAFFIOTI, 2001).

Conceito de violência

A palavra violência vem do termo latino vis,que significa força. Assim, violência é o abuso da força, usar a violência contra alguém ou fazê-lo agir contra sua vontade (VERONESE; COSTA, 2006).

Para o senso comum, pode ser fácil conceituar violência, pois existe o conhecimento de que é uma ação realizada por indivíduos, grupos, classes ou nações que ocasiona danos físicos, emocionais ou morais, a si próprio ou a outros, gerando muitas teorias parciais. A violência pode ocorrer também por omissão, não apenas por ação, quando se nega ajuda, cuidado e auxílio a quem precisa; porém, não se pode deixar de destacar que a violência está longe de ter um significado preciso e único, visto que é considerada um fenômeno complexo e multicausal (ANDO; ANDO, 2008).

De acordo com Dias (2007), o conceito legal de violência tem recebido algumas críticas da doutrina. Por exemplo, se a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) for interpretada literalmente, pode-se dizer que qualquer crime contra a mulher seria violência doméstica e familiar, por causar o mínimo de sofrimento psicológico.

O Código Penal Brasileiro (Lei nº 2.848/40), em seu artigo 61, II, letra f, traz uma agravante, que limita o campo de abrangência, restringindo a violência contra a mulher na Lei específica.De acordo com o referido artigo, somente a violência praticada contra a mulher em razão do convívio familiar ou afetivo é que aumenta a pena.

Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

[...] II - ter o agente cometido o crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

[...] f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica; (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006).

Dias (2007) menciona ainda que, para se chegar ao conceito de violência doméstica, é necessária a conjugação dos artigos 5º e 7º da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06). Primeiro a Lei define o que é violência doméstica e depois estabelece seu campo de abrangência.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) realizou um estudo, no ano de 2002 e publicou o resultado no “Relatório Mundial sobre a Violência e Saúde”, no qual definiu a violência como:

[...] uso da força física ou do poder real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação. (OMS, 2002, texto digital).

Formas de violência

Uma vez que no âmbito do Direito Penal vigoram os princípios da taxatividade e da legalidade, não podem ser admitidos conceitos vagos. Portanto, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) reconhece a violência doméstica e familiar contra a mulher como: violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

Conforme o artigo 61, II, f do Código Penal Brasileiro, mencionado anteriormente, o réu fica sujeito às outras vicissitudes que a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) traz. Pois, mesmo que o crime seja de menor potencial ofensivo, a ação tramitará na Vara Criminal (DIAS, 2007).

Violência física

Artigo 7.º, I: “a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal”.

De acordo com Porto (2012), a violência física é a ofensa à vida, à saúde e integridade física, tratando-se da violência propriamente dita. É caracterizada normalmente por hematomas, equimoses, queimaduras e fraturas. DIAS (2007). É uma das formas mais frequentes de violência intrafamiliar, pois se origina de várias formas, através de punições e disciplinamento, costume que foi introduzido no Brasil pelos jesuítas, que puniam quem ousasse faltar a escola jesuítica com palmadas e o tronco (forma de tortura) (GUERRA 2011).

A disciplina e a punição não são os motivos legitimadores da violência, mas sim uma forma de alívio de tensões e frustrações dos seus agentes. Esse tipo de violência também está relacionado com o fator psicopatológico (DIAS, 2007).

Violência psicológica

O artigo 7, inciso II, da Lei Maria da Penha traz a definição legal de violência psicológica:

Artigo 7.º, II:

a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.

Violência psicológica éa ameaça, o constrangimento e a humilhação pessoal. Este tipo de violência está inserto em todas as outras formas de violência e é muito difícil de identificar, pois não deixa marcas aparentes, apenas um sentimento de rejeição e desvalia nas vítimas.

A violência psicológica pode ser definida também, nas palavras do psicólogo francês Diel (apud VERONESE; COSTA, 2006), como aquilo que causa ferida mortal à alma, “a recusa da nutrição da alma, necessária à vida: a ternura”. O psicológico da criança é frágil, e as respostas inadequadas dos pais em relação às suas necessidades básicas podem desencadear traumatismos no futuro da criança. Essas respostas inadequadas podem gerar condutas agressivas e desadaptadas, pois são elementos deformantes do caráter e da personalidade da criança e do adolescente.

A expressão violência doméstica tem sido criticada pela doutrina, pois poderia ser aplicada a qualquer crime cometido contra a mulher. Misaka (apud DIAS, 2007) afirma que “todo crime gera dano emocional à vítima, e aplicar um tratamento diferenciado apenas pelo fato de a vítima ser mulher seria discriminação injustificada de gêneros”. Se esta realidade não for reconhecida, o agente estará infringindo o princípio da igualdade.

Esta forma de violência é a mais frequente e a menos denunciada. Muitas vezes, as vítimas não se dão conta de que estão sendo violentadas psicologicamente, por estarem acostumadas. Isso pode ocorrer devido a, na sociedade moderna, existir muito preconceito e discriminação de gênero, ou ainda, as famílias em que se criaram tratarem uns aos outros habitualmente de forma violenta, usando xingamentos e palavrões, o que faz com que a criança cresça com aquele costume, gerando um problema futuro.

A consumação da violência psicológica e a confirmação do dano dispensam laudo técnico ou a realização de perícia. Uma vez reconhecida por juízo competente sua ocorrência, cabe medida protetiva de urgência, sendo que o agressor sofrerá as sansões previstas no artigo supramencionado.

Violência sexual

O artigo 7, III, da Lei Maria da Penha traz a definição legal de violência sexual:

Artigo 7.º, III:

a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.

Existem várias definições de violência sexual. Pode-se afirmar que violência sexual é uma questão de gênero; que ela se dá por causa do papel do homem e da mulher por razões sociais e culturais em que o homem é o dominador. É um tipo de violência que envolve relações sexuais não consentidas e pode ser praticada tanto por conhecido ou familiar ou por um estranho.A violência sexual é um problema universal, pois se sabe que para o homem é uma questão de poder e controle e que atinge as mulheres de todos os tipos e lugares (VERNECK, 2010, texto digital).

O mesmo relatório da OMS (Organização Mundial de Saúde), realizado em 2002, definiu a violência sexual como:

Qualquer ato sexual ou tentativa do ato não desejada, ou atos para traficar a sexualidade de uma pessoa, utilizando repressão, ameaças ou força física, praticados por qualquer pessoa independente de suas relações com a vítima, qualquer cenário, incluindo, mas não limitado ao do lar ou do trabalho. (OMS, 2002, texto digital).

A violência sexual é definida como uma transgressão dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, principalmente ao atentado de direito físico e ao controle de sua capacidade sexual e reprodutiva.

Esta forma de violência sempre foi muito confundida, pois a tendência é confundir a sexualidade como um dos deveres do casamento, e seria legítima a insistência do homem, como se ele estivesse a exercer um direito. Por isso, houve certa resistência da doutrina e da jurisprudência em admitir a possibilidade da ocorrência da violência sexual nos vínculos familiares, especialmente entre marido e mulher (DIAS, 2007).

Ainda conforme Dias (2007), este tipo de crime com abuso de autoridade, recorrente nas relações domésticas, é tratado pelo Código Penal Brasileiro de forma mais rígida, porque, quando o crime é praticado nestas circunstâncias, a pena será agravada. Pode-se destacar o artigo 61 do Código Penal Brasileiro, que em seu inciso II, traz um rol destas agravantes:

[...] (CP, art. 61, II, e):contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge; e (CP, art. 61, II, f): com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica.

A violência sexual é constituída pelos delitos equivocadamente chamados de “contra à desigualdade sexual”. Estes delitos estão elencados no Código Penal Brasileiro, a saber:

[...] Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.

Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima.

Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos.

Art. 218. Induzir alguém menor de 14 (catorze) anos a satisfazer a lascívia de outrem.

Art. 218-A. Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem [...].

No que tange ao Direito Penal, se todos esses delitos forem cometidos no âmbito doméstico, familiar ou de afeto, o agente submete-se às sanções da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). Ainda, esses delitos sexuais são definidos pela lei como de ação pública condicionada, e dependem de representação da vítima, mas, quando o crime for cometido com abuso do poder familiar, a ação passa a ser pública incondicionada, conforme o artigo 225, § único:

[...] Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação. Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.

Violência patrimonial

A violência patrimonial é tratada pela Lei Maria da Penha em seu Art.7º, inciso IV:

a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.

Constitui o crime de violência patrimonial a retenção, a subtração e a destruição de instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos (PORTO, 2012).

A violência patrimonial está presente na vida de muitas mulheres, porém ainda é desconhecida pela maioria das vítimas. Esta ignorância decorre do fato de que muitas mulheres não sabem que a retenção, a subtração ea destruição parcial ou total de seus objetos pessoais são consideradas um crime previsto na lei Maria da Penha (Lei 11.340/06). As vítimas não a reconhecem como tal e não denunciam esse tipo de agressão. Dessa forma, a violência patrimonial raramente se apresenta separada das demais, servindo, quase sempre, como meio para agredir física ou psicologicamente a vítima; ou seja, durante as brigas o agressor usa do artifício de abstrair os bens da vítima para que ela se cale e continue a aceitar a agressão.

Cabe mencionar outra peculiaridade importante da violência patrimonial, noque se refere à obrigação alimentar Quando o agente deixa de atender à obrigação, com plenas condições econômicas, além de violência doméstica, pratica o crime de abandono material, não sendo necessário que este encargo esteja fixado judicialmente. (DIAS, 2007).

Violência moral

O artigo 7º, inciso V, define o que seja violência moral:“a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria”. O crime é praticado contra a honra da mulher e, de um modo geral, é concomitante à violência psicológica. Contudo o agente que infringir o art. 7º, inciso V, da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), está sujeito às penalidades descritas nos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal Brasileiro, conforme segue:

Calúnia

Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

§ 1º - Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga.

§ 2º - É punível a calúnia contra os mortos.

Difamação

Art. 139 - Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação:

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

Injúria

Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

Se o crime for cometido em decorrência do vínculo familiar ou afetivo, passa a configurar como violência doméstica. Quando isto ocorre, é instituído o agravamento da pena, conforme o artigo 61, inciso II, letra f do Código Penal Brasileiro.

Conforme Porto (2012), é possível que todos os tipos de violência mencionados acima ocorram no âmbito familiar, doméstico ou em uma relação íntima de afeto. Não ocorrendo nesses âmbitos, não se caracteriza como violência doméstica.

REFERÊNCIAS

SAFFIOTI, Heleieth I.B. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. 2001. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-83332001000100007&script=sci_arttext&tlng=es. Acesso em: 03 julho 2014.

VERNECK, Barbara. Violência Sexual, Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www. coladaweb.com/direito/violencia-sexual>. Acesso em: 28 mar. 2014.

VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli Marlene Morais da. Violência doméstica: Quando a vítima é criança ou adolescente. Florianópolis: OAB/SC, 2006.

ANDO, Daniela de Araújo; ANDO, Nilson Massakazu. Crianças e adolescentes em situação de violência: traços inquietantes da contemporaneidade. Revista da Associação Brasileira de Psicopedagogia, São Paulo, set. 2008. Disponível em: <http://www.abpp.com.br/artigos/92.htm>. Acesso em: 23 maio. 2013.

BRASIL. OMS. Portal da Saúde. Tipologias e naturezas da violência. 2002. Disponível em:<http://portal.saude.gov.br/portal/saude/profissional/visualizar_texto. cfm?idtxt=31079&janela>. Acesso em: 09 maio 2013.

BRASIL. Vade Mecum Saraiva. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Violência de pais contra filhos: a tragédia revisitada. 7. Ed. São Paulo: Cortez, 2011.

PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência doméstica e familiar contra a mulher: análise crítica e sistêmica / Pedro Rui da Fontoura Porto. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007.


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